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“Caso Florianópolis” expõe vulnerabilidades da pesquisa de abduções

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O que pode levar alguém a fantasiar – ou mentir deliberadamente – sobre uma história de rapto por seres alienígenas? E ainda fazê-lo continuadamente, envolvendo amigos e parentes que, em alguns momentos, dispõem-se mesmo a corroborar sua narrativa? A psicologia, neurologia e a bioquímica ainda engatinham no desvendamento do funcionamento cerebral, na formulação dos mecanismos que orientam as motivações humanas e no fenômeno da criação da memória, seja ela falsa ou verdadeira. E por maiores que sejam os avanços em todos esses campos, até o momento, eles só fazem embaralhar a pesquisa do controverso universo de relatos de supostas abduções por seres alienígenas. Controverso porque, mesmo entre os entusiastas da pesquisa ufológica, os ufólogos, ufófilos e afins, aceitar a realidade de tal fenômeno está longe de ser uma unanimidade.
A resistência dos céticos explica-se por um fator essencial: a carência de provas objetivas das alegadas incursões ao que seriam “naves alienígenas” e, em casos extremos, até mesmo a outros planetas, outras civilizações. Desde que Barney e Betty Hill contaram sua incrível aventura – mais parecida com um pesadelo – no interior de um disco voador, em 1966, pesquisadores do mundo todo passaram a colecionar milhares de relatos semelhantes, onde, na maioria das vezes, há padrões de procedimentos e comportamentos. Recentemente retratado na mini-série “Taken”, produzida por Steven Spielberg, o fenômeno já ganhou ares de uma epidemia, com estatísticas que falam de 600 mil, 2 milhões, 4 milhões e até 15 milhões de abduzidos, e isto somente em território norte-americano.
Ainda assim, tais ocorrências não ganharam, até hoje, elementos que consolidem um método de pesquisa adequado ou, ao menos, evitem as vulnerabilidades inerentes ao seu tratamento. No máximo, encontraram campo fértil na formação de grupos que, espelhando-se na dinâmica de grupos como os alcoólicos anônimos, vítimas de estupros, portadores de doenças crônicas em geral, procuram se ajudar mutuamente relatando coletivamente suas experiências. Não raro, são objetos de outro polêmico método, a hipnose, como forma de resgatar possíveis memórias apagadas de vivências traumáticas quando em poder dos supostos ETs.
As vulnerabilidades e perigos desse campo de investigação ganharam contornos bem definidos em um episódio recente no Brasil. Foi também pioneiro na forma de narrativa e investigação, já que o pesquisador que apurou o caso, Eustáquio Andréa Patounas, fez questão de expor a pesquisa – obviamente resguardando a identidade dos protagonistas – passo a passo na Internet, nas listas de discussão de Ufologia por e-mail. Uma verdadeira novela com cada novo capítulo quase em tempo real na grande rede de computadores. E foi talvez essa a inovação o que evitou a transformação desse evento numa grande dor de cabeça para a credibilidade da pesquisa ufológica nacional.
Presidente da Socex, Sociedade de Estudos Extraterrestres e adepto do que ele intitula de “ufologia holística”, Patounas é pesquisador do tema há mais de 40 anos, autor de livros e palestrante praticamente obrigatório na maioria dos congressos e conferências de Ufologia no Brasil. Sua pesquisa teve início em novembro, quando postou uma primeira mensagem nas principais listas de ufologia nacionais. “Vou compartilhar aqui um caso que estou acompanhando, pois é muito recente e a pessoa envolvida é alguém que conheço desde quando este era pequeno. Dispenso comentários ‘engraçadinhos’ sobre o que vão ler abaixo. Obviamente omito o nome da pessoa para preservá-la. Postarei aqui os e-mails que ele me enviou”, inaugurou. A seguir apresentou a mensagem de um rapaz de Florianópolis, estudante de direito, conhecido seu desde os 7 anos de idade, com um relato surpreendente. O jovem abriu a conversa relatando seus temores a respeito de um sonho recorrente, até então sem relação aparente com alienígenas. O primeiro indício aparece na segunda mensagem: “…comecei a lembrar do pouco que aprendi com você, e procurei pesquisar dentro da ufologia algo que explicasse, vi que tem pessoas com relatos parecidos com os meus…”.

“Novelização” e pesquisa interativa

A historia ficaria mais complexa, a cada novo e-mail postado por Patounas. O rapaz teria uma cicatriz no abdômen, diagnosticada como uma pedra no rim, a qual um visitante desconhecido, em seu quarto no hospital, teria pedido que não fosse retirada. Ele chegou a mandar o raio-x do rim ao pesquisador. Depois o suposto abduzido passou a fotografar “pontos pretos” no céu em locais que lhe seriam indicados em sonhos. Lembrando-se de ter recebido uma recomendação por parte de seu visitante no quarto do hospital, para ir a uma zona rural, disse que assim o fez, mas convenientemente desencontrou-se do contato indicado por Patounas para acompanhá-lo.
A partir deste ponto, a “novela” começa a ganhar contornos ainda mais surreais e emotivos. Levando Patounas e seu contato a perderem a noite de sono, o rapaz só deu notícias na madrugada. O álibi do desencontro teria sido justamente uma abdução por alienígenas. Quem relata é o pesquisador: “Disse que parou em determinado local para ligar para o acompanhante que recomendei e marcar onde se encontrariam, mas meu outro amigo (conforme e-mails compartilhados) não conseguiu encontrá-lo no local determinado”.
E continua: “O jovem disse que a partir deste telefonema não lembrava de mais nada. Acordou segundo ele, 6km distante do local que parou para telefonar. Estava deitado no meio do mato junto a vacas”. A dramaticidade aumenta. “Lembra que o tal homem apareceu para ele novamente (o careca do hospital). Lembra também ter sido deitado em alguma coisa e constrangido… Falou também que o tal homem perguntou-lhe sobre ‘o que tinha na barriga e se iria ao médico’”. “Pela descrição que me deu dos fatos, deduzi que ficou ‘apagado’ por cerca de 9 horas”, escreveu Patounas.
Com a sugestão data pelo pesquisador de buscar fatos estranhos em seu passado, o rapaz encontrou reforço para “explicar” o que estaria se passando com ele até em histórias contadas por sua mãe.
Mais fatos misteriosos ocorreriam, incluindo uma missão na nave alienígena, junto com outros humanos, participando de uma seção de exames médicos em outros supostos raptados. Noutro suposto contato, disse ter sido levado a outros planetas e ao futuro, no ano de 2016, sendo devolvido são e salvo ao seu tempo real 11 horas depois, segundo ele! Curiosamente a namorada, até então preservada nas histórias, passa a fazer parte do contexto. Estava ao lado do rapaz e supostamente testemunhou alguns dos acontecimentos insólitos, e assim o narrou ao pesquisador.
Nas listas de ufologia o relato seguia despertando entre os participantes reações das mais diversas, variando do apoio ao rapaz à cautelosa dúvida. Mas a história começou a degringolar a partir de uma foto. Uma das muitas que passaram a ser fornecidas a Patounas pelo rapaz (sempre obtidas segundo ele com sua máquina digital), talvez no ímpeto de produzir algo mais palpável a corroborar sua incrível narrativa. No dia 3 de janeiro de 2004, contou ter ouvido um “zumbido” após o qual foi “impelido a tirar fotografias a esmo do céu com sua máquina digital”, contou Patounas. Teria então captado a imagem de um OVNI luminoso. “Este objeto aparece em apenas uma das fotos tiradas e ele afirma que não viu a nave fotografada”, completou. “Analisem os especialistas agora”, chegou a desafiar o ufólogo.
A foto foi postada nas listas no dia 6 de janeiro. A primeira e esclarecedora análise não precisou de mais do que algumas horas. No mesmo dia, Wallacy Albino, presidente do GEUBS – Grupo de Estudos Ufológicos da Baixada Santista – deu seu diagnóstico contundente. “Essa foto se trata de montagem; esse objeto faz parte de uma fotografia tirada em Londrina em 1982; esta foto saiu na Revista UFO número 68 na pagina 19 e foi mandada pelo jovem amigo Agostinho Balan. Comparando as duas fotografias vemos que é o mesmo objeto, está no mesmo ângulo e com a mesma luminosidade e sombras. Impossível se tratar de duas fotos diferentes com tamanha semelhança”, sentenciou Wallacy.
A avaliação chegou a indispor os dois estudiosos. “Bem, eu nem deveria comentar tal afirmativa, mas vou fazê-lo em defesa da idoneidade do jovem. Duvidar todos têm direito, mas afirmar categoricamente que é montagem e que foi copiada de uma matéria da UFO aí já é demais. A nave é privilégio do Balan? Ela é única, exclusiva e voa só em Londrina? Oras…vamos ser sérios”, respondeu Eustáquio.
Uma montagem comparando ambas as imagens – a de Florianópolis, do suposto abduzido, e a de Londrina, na foto tirada em 1982 – foi produzida pelo ufólogo Alexandre de Carvalho Borges, para sepultar qualquer dúvida a favor da veracidade da foto recente. Em sua mensagem seguinte, Patounas desculpou-se com os demais participantes das listas porque não voltaria a falar no caso. Ainda contrariado e em tom irônico, resignou-se: “…tenho que me ajoelhar perante os experts que tudo sabem das listas e não me sinto em condições de enfrentá-los”.
Não demorou muito e a centelha da dúvida plantada na análise da foto surtiu seus efeitos mais importantes. Apenas dois dias depois, o presidente da Socex colocaria na Internet sua descoberta a respeito da verdadeira trama por trás da história do estudante de direito de Florianópolis. Redimiu-se do que o colega de pesquisa Wallacy Albino, durante a troca de mensagens nas listas, lamentou ainda existir, o espírito do “Eu quero acreditar”.
“Após exaustiva troca de e-mails, compartilhamento, fotos e inúmeras horas de conversa pessoal com o jovem de Florianópolis, considero encerrada a pesquisa sobre o caso e cujo resultado ajudará a todos na elaboração de análises e acompanhamentos de casos”, escreveu Patounas.
Segundo ele, depois de uma longa conversa com o rapaz, anotou os nomes de supostos planetas que o jovem teria visitado e mais tarde, procurando na Internet, encontrou todo o enredo num jogo de RPG conhecido como “Mestres do Poder”. RPG, sigla de Role Playing Game, é um jogo onde os participantes assumem personalidades de seres fictícios e o desfecho depende das interações num universo de fantasia.
A fusão entre ficção e realidade

Patounas foi sucinto. “Considerando este simples detalhe e não querendo estender-me mais, encerra-se a pesquisa com a conclusão final de fraude total”, concluiu. De fato, não é novidade a polêmica sobre os RPGs e sua influência na vida real de algumas pessoas. Há episódios trágicos e um dos mais famosos foi relacionado à morte do estudante Irving “Bink” Pulling. Com 16 anos à época, Pulling jogava “Dungeons & Dragons” na escola. No dia 9 de junho de 1982, o estudante se suicidou com uma pistola e sua mãe, Patrícia Pulling, responsabilizou o jogo pela morte do filho, iniciando uma cruzada contra o “D&D”.
No caso Florianópolis não ocorreu nenhuma tragédia, mas a fantasia de um jovem conseguiu envolver um experiente pesquisador e, com ele, encantar uma legião de leitores que, graças à Internet, acompanharam passo a passo o desdobramento da história. Paradoxalmente, responsável pela potencialização de seus efeitos, a rede mundial também foi determinante na sua rápida desmistificação, evidenciando os perigos e armadilhas da apuração das polêmicas abduções.
Entrevistado pelo Portal/Revista Vigília, o presidente da Socex admitiu que o fato de conhecer o rapaz anteriormente pesou. “Quanto ao vínculo entre pesquisador e ‘contatado’ ele pesa sim, pode alterar a investigação do mais experiente, mas no meu caso (e o Sérgio é testemunha disso), sempre estive com um pé atrás. Dei corda, muita corda… Compartilhei com todos nas listas… Por outro lado, pude ter informações familiares que compartilhei nas listas também”, destacou.
Patounas justificou sua reação quando da avaliação feita por seus colegas. “Aquele e-mail poderia estar escrito de forma diferente, tipo: ‘pessoal, pode até ser coincidência, mas percebam a similaridade com o ufo fotografado em Londrina no ano de 1982’, entende? Reagi emocionalmente, pois não aceito que alguém afirme taxativamente sem estar fazendo parte da pesquisa”.
Ele também fez um alerta àqueles que acompanham ou investigam casos de supostos abduzidos. “Precaução, caldo de galinha e água benta em excesso nunca fizeram mal a ninguém. Devemos nos lembrar sempre que nossa idoneidade está em jogo”. Ele lembrou ainda que o jovem em momento algum admitiu a farsa, mesmo quando confrontado com a história do RPG. “Creio que uma série de fatores desencadeou isso e um psicólogo pode explicar”, afirmou.
Uma famosa não-abduzida

Não é exclusividade brasileira a dificuldade em separar histórias reais de relatos fantasiosos, sejam estes criados deliberadamente ou não. O pesquisador norte-americano John E. Mack, psiquiatra de Harvard e um dos mais conceituados no estudo do fenômeno já foi duramente criticado por seus métodos. Na época, Mack já não era um anômimo. Era renomado em sua área de atuação na psiquiatria e ganhador de um prêmio Pulitzer.

Em 1994, através da revista Times, veio à tona a história da suposta abduzida Donna Bassett, jornalista e escritora que se infiltrara no grupo de pacientes de Mack com uma falsa história de rapto por alienígenas. Pouco tempo depois o psiquiatra foi convidado a proferir uma palestra organizada pelo Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal (CSICOP) – ou Comitê para Investigação Científica das Alegações do Paranormal – e, de forma constrangedora, não fora avisado de que seria confrontado com a falsa abduzida. O Comitê é mundialmente famoso por sua postura cética em relação aos alegados fenômenos insólitos, incluindo a Ufologia.

Deixando de lado a polêmica discussão sobre a ética da autora da história fictícia e a armadilha do CSICOP, o fato é que os métodos de Mack falharam totalmente em detectar uma fraude simples e, a julgar pela comoção gerada no recente caso de Florianópolis, mais comum do que gostariam os ufólogos.

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